segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Contos de Tinta II - Dragoa Cega



Há mais de 40 anos atrás, tive a oportunidade de encontra um dragoa de prata chamada Alyrhyrelarn, ela era nova, provavelmente não passava de seus 20 anos de idade. Era uma criatura que adorava andar entre os humanos e mortais, sempre adotando a forma hominídea de Fey, alegando que eram esteticamente mais elegantes, esbeltas e claro, sem mencionar a beleza estonteante. Diferente de seus irmãos e irmãs de cria, acabou adotando um forte senso protetor dos mais fracos. Alyrhyrelarn era doce como pessoa, ao ponto de chegar numa ingenuidade e inocencia indescritível.

A fama da draconica chegou a se espalhar por onde frequentava óbviamente, mas eram vilarejos que eram ocultos, discretos e somente em épocas de seca, sua presença abençoava com a transição de nuvens pesadas e carregadas, regando todas as plantações. Curiosamente, aqueles que chegaram perto da feiticeira das chuvas, diziam que ela mesma possuía um perfume que relembrava a chuva. 

E com o passar do tempo, apesar de saberem de sua presença, seu nome foi o único empecilho que não foi possível decorar por mas que os vilarejos respeitassem Alyrhyrelarn. Por tantas tentativas, um bardo passageiro de uma viagem resolveu dar à figura quase-entidade, o nome de Ariela, por se assemelhar fonéticamente, e por ser bem mais fácil pronunciar. 

E enfim, Ariela, criança que trazia água, significava boa colheita, e nunca mais seca. Ariela visitou sempre os mesmos vilarejos locais, se limitando a ser discreta, não querendo chamar a atenção desnecessária. Suas visitas esporádicas acabaram formando um círculo de vilarejos que recebiam sua benção. Juntando todo o círculo, a população não passava de 80 habitantes, eram poucos adultos, mas  conseguiam ser quase auto-suficientes para serem tão isolados. Praticamente era uma terra enorme, uma única fazenda onde foi dividida entre quatro famílias que ficariam responsáveis pelas plantações, colheitas, e criações de animais.

Com o assar dos anos, o nome de Ariela cresceu e chamou a ateção dos vizinhos inevitávelmente. Seus feitios acabaram virando notícias que se espalharam entre algumas caravanas de comerciantes. Sua fama cresceu a ponto de se tornar uma entidade por completo, apesar de não ostentar todo esse poder. Mas a fama toda acabou se tornando uma lamina de dois gumes. Saques começavam a ocorrer pelas fazendas, que por sua vez começaram a ocorrer sequestros e logo com a falta de fiança para o que era demandado, mortes. E o pior que a maioria acabou sendo alvo os próprios adultos. Adultos que eram ainda uma minoria num vilarejo com bastante adolescentes que ajudavam seus pais nos trabalhos braçais. 

A falta de adultos começou a ser significativo. E crianças estavam ficando órfãs, sem saber o que fazer pela frente. Ariela não teve outra opção se não fazer algo. Agiu rapidamente em espantar esses bandidos, e ao mesmo tempo acabou adotando essas várias crianças para cuidar. E durante seu trabalho, foi capaz de acabar com tribos e mercenários que se aproveitavam da indefesa do círculo de vilarejos.

Infelizmente Ariela acabou chamando mais atenção. Não era mais só uma entidade presente para trazer benção nas colheitas, agora era a guardiã. 

A maior falha, que certamente selaria o destino do círculo de vilarejos foi o fato da dragoa não ter capacidade de treinar um grupo para defender, sem que dependessem dela por completo. E cedo ou tarde alguém iria explorar esse erro.

Se sentindo responsável pelo numero grande de órfãos, Ariela adotou todos eles para cuidar até ficarem responsáveis e atingissem a maioridade. Logo precisou de um lar, apertado para seu gosto, mas grande o suficiente para abrigar as crianças. Começou inicialmente com uma família inteira de onze, onde cuidaria mesmo com a falta de disciplina. Esse número cresceu a medida que sua fama ainda estava subindo como guardiã, chegando ao ápice de cuidar ao todo de 27 crianças. Trabalho cansativo, mesmo sendo ainda apenas uma jovem draconiana, acabou recebendo ajuda da mais velha da turma. 

Celine era a mais velha e fazia parte do primeiro grupo que Ariela adotou. Era filha de pai que fora ex soldado, e mãe camponesa. Celine não iria poder assumir tão logo a fazenda deixada por seus pais e lentamente começou a se tornar uma segunda mãe. Sua capacidade de amadurecer era da velocidade de um mortal, de uma humana, e tão logo se tornou mais madura que Ariela. 

Com a calmaria, e com um grande pesar, Celine acabou se casando com um jovem que arcaria com a fazenda deixada pela família da garota. E rapidamente se juntaram para continuar a manter as terras férteis e suficientes de cultivo. Ariela sentiu o grande pesar de perder não só alguém que lhe ajudava bastante, mas uma irmã.

Prosperidade levou com que Ariela reduzisse para apenas sete crianças no orfanato. Nesse meio tempo recebeu ajuda não só do círculo, mas também de sua irmã e amiga Celine e de um bardo que constantemente viajava, sempre trazendo novidades do mundo lá fora e muitos livros, o que acabou amamentando a sede de querer conhecer o que poderia existir além do vilarejo para qualquer um ali. Toda a noite em que esse bardo passava a noite, contava alguma aventura ou alguma história diferente para as crianças. Vir para o círculo era sempre uma grande expectativa, pois quando o bardo não dispunha nenhuma história, vinha com alguma supresa, e muitas delas eram fogos de artifício.

As vezes que veio, apresentou-se como "Canção da Água", era um bardo mestiço de humano com elfo que certamente chamava a atenção, não só por sua linhagem mas pelo seu ar misterioso que sempre guardava consigo. 

Infelizmente tempos de calmaria duram pouco, sempre quando existe alguma força grande presente, acaba atraindo atenção, e muitas vezes olhos indesejados. O fato de uma dragoa ser a guardiã atraiu os olhos da infame General Esdese. Conhecida por suas conquistas de modo violento, repulsivo e horripilante como também alguém que era extremamente manipuladora. Seus comandantes eram escolhidos a dedo por ela, cada um possuindo uma característica em especial que o faria merecer o seu lugar. E ao saber das notícias de uma dragoa que deveria perfeitamente lhe servir para o futuro que talharia pela frente, mandou aquele que melhor poderia se infiltrar, e usar qualquer método necessário para obter o que precisava. Denkel, assassino conhecido por suas táticas cruéis e perito em atingir nos pontos fracos por sua calma, sempre tomando o tempo necessário para investigar.



As visitas do bardo ganharam certa constante com o passar do tempo. E sem que a própria dragoa notasse, estava já admirando aquela criatura. Como qualquer outro bardo, era misterioso, cheio de segredos que atiçavam qualquer mulher que chamava a atenção, e isso não excluiu Ariela. E com cada visita, a dragoa com sua forma feérica, acabou sempre caprichando mais em sua aparência, vestido e mesmo em seu visual todo. Mesmo não sendo a forma real, de dragoa, vivera tempo suficiente entre os mortais para entender o que era beleza.

Era um dia qualquer, os rumores que o bardo vinha de viagem e faria provavelmente alguma apresentação circulava como um vírus em uma população densa. E simplesmente, nesta tarde qualquer, o bardo tinha chego ao vilarejo e sem demoras, havia levado as crianças para um passeio. Ariela certamente ficou despreocupada com isso e tratou de adiantar as tarefas o máximo que pode para ter o dia seguinte e o resto da noite livre com o bardo, após as crianças dormirem.

Aquela noite era uma noite aguardada para Ariela. Há tempos esperava para conversar com Thysyrael. Tinha vontade de tentar se pronunciar, mostrar não só a atração ou a admiração que sentia por ele, era algo que desenvolvia com o tempo, um sentimento que não conseguia exlicar e sua respiração acelerava conforme seus pensamentos caíam sobre o jovem mestiço.

Retornou em passos leves enquanto cantarolava pelo caminho todo. Mesmo Celine, que recebera a visita de Ariela alguns minutos atrás havia notado o quanto a dragoa estava diferente, feliz e radiante apela primeira vez naquela magnitude.

Ariela chegou no vilarejo para apenas sentir um forte cheiro de sangue em suas narinas aguçadas. Calafrios desceram de sua nuca de pelos eriçados até a ponta de sua espinha conforme ia se aproximando do orfanato. Cada passo dado era uma sensação pior. E logo depois do odor forte, a ausência das pessoas começavam a acelerar seu coração. Não sabia o que pensar, não era para nada disso acontecer, e por fim, o que tinha acontecido?

Os corpos daqueles que frequentavam o vilarejo jaziam esquartejados, tingindo as paredes de fora do orfanato. O que antes eram paredes amarronzadas, agora eram puramente avermelhadas. Aquele cenário desumano foi como um aperto que tirou o ar dos pulmões de Ariela. Perdeu as forças rapidamente e caiu de joelhos enquanto colocava a mão sobre seu peitoral, agarrando suas roupas tão firmemente que machucava a própria mão.

Uma apresentação de horrores, as tochas estavam acesas, e indicava que dentro do orfanato tinha alguma atividade. Evitando ao máximo tocar em qualquer coisa com seus passos cambaleantes, Ariela prosseguiu pela entrada principal e passou pela porta que estava escancaradamente aberta. Seu estômago revirou e apertou como nunca. Nunca tinha passado tanto nervosismo na sua vida. Cautelosa, seus pés delicados que calçavam botas da mesma escala de delicadeza era quase como se tocasse o chão com os pés nus. Silenciosa e furtiva seguiu um passo após o outro sem a mínima vontade de encontrar mais surpresas indesejadas. Seu olfato distinguia o quão fresco as presenças podiam ser. E certamente sentia o odor do Bardo e das crianças. Sua audição aos poucos ouvia a música que se iniciara, e pelos tons usados, Ariela reconhecia de imediato que era o lute de Thysyrael. Aquilo tudo ainda não lhe tinha descido e achava que podia ser uma brincadeira, e uma brincadeira de muito mal gosto. Sem esperar muito, e menos furtiva também, seguiu para o andar de cima onde esbarrava no último degrau para cair em algo macio.

A música parava de imediato e Ariela notava que tinha caido nos braços de uma das crianças, mas de corpo gelado. Relutou em entender de primeira, e se afastou um pouco para conseguir se levantar e ver aquele mar de corpos degolados e espalhados pelo andar todo. E não muito longe da dragoa, Thysyrael a olhava com um sorriso na boca, enquanto usava do instrumento como arma para bater violentamente contra o rosto de Ariela.

- Virtuoso! Tu podes ver minha arte, minha querida Ariela! Compreendes que essa escala será relembrada para sempre? - Dizia de forma um tanto doentia e vil, enquanto desferia outro baque com o instrumento. - E logo poderá se juntar a eles! Não poderia ser mais magnífico que isto! Serás o centro de minha obra de arte!

O problema que aquele não era Thysyrael, não era o bardo que Ariela conhecia. Mas era uma replica perfeita. O acento, o cheiro, o jeito, capaz mesmo até de enganar até um dragão. Denkel, o assassino mestre de disfarce.

Bater com o instrumento em seu rosto não era muito significativo. Ariela poderia resistir se estivesse em um dia normal. E a cada batida, ganhava agora um hematoma, um inchasso que mais tarde faria diferença. Estava perdendo a figura de fey que tinha, sua concentração caindo conforme cada encontro. Sem conseguir manter mais sua aparência, foi obrigada a voltar em forma dracônica.

O assassino aproveitou-se desse momento e usou várias agulhas pequenas que estavam escondidas em seu instrumento e disparou contra o rosto da dragoa que se encontrava pasmada ainda e sem reação. Ariela perdeu a visão apartir desse dia. Seu grito estraçalhou todos os vidros daquele quarto e pode ser ouvido por mais de centenas de metros, suficiente para atrair a atenção de Celine que vivia na fazenda próxima ao vilarejo.



Quando o bardo mestiço chegou ao vilarejo, foi atacado de prima pela dragoa. Recebeu uma mordida violenta suficiente para deixar cicatriz, mas era uma cicatriz que mais o feriu na alma. Ao berro de dor, veio o choro do jovem rapaz, não demorando muito para cair na inconsciência.

- Pare Ariela! Você sabe muito bem que não poderia ter sido ele! Canção da Água não faria isso! Pense bem! - E como uma pancada forte as palavras de Celine foram como uma pancada forte no estomago embrulhado de Ariela. Aquele homem que um dia ela admirou era seu inimigo e ao mesmo tempo não era e agora tinha machucado ele. Deu um grunido e fugiu. Ariela fugiu para nunca mais ser visto. Enquanto que Celine levou o único sobrevivente da vila para cuidar até que o mesmo tivesse forças o suficiente para se levantar.

~[FIM]~